Diretor: Yakov Protazanov
Roteiro: Aleksei Fajko, Fyodor Otsep
Elenco: Yuliya Solntseva, Igor Ilyinsky e Nikolai
Tsereteli
SINOPSE E
COMENTÁRIO
“Sigam nosso exemplo camaradas! Unam-se numa
família de trabalhadores, numa União Marciana de Repúblicas Socialistas
Soviéticas”, brada o herói em um levante de operários nos subterrâneos de Marte
contra uma espécie de totalitarismo czarista de outro mundo. Considerado o
primeiro filme de ficção científica soviético, “Aelita - Rainha de Marte”
(1924) é na verdade um anti-sci fi. Os revolucionários bolcheviques já se
consideravam o futuro e a vanguarda, não precisavam de filmes sobre futuros
utópicos. Como pretende demonstrar no filme, a utopia sobre viagens espaciais
somente poderia ser uma excrescência do individualismo burguês. Mas
ironicamente “Aelita” acabou influenciando clássicos do expressionismo alemão
como “Metrópolis” e séries das futuras matinês dos cinemas norte-americanos
como “Buck Rogers”. Também "Aelita" vai inaugurar o imaginário sobre
Marte e a paranoia das invasões no secúlo XX.
O diretor de “Aelita, Rainha de Marte”, Yakov
Protazanov, já havia dirigido muitos filmes entre 1911 e 1918 e era considerado
por muitos um gênio. Durante o período da Guerra Civil Russa (1918- 1922) que
se seguiu após a revolução Bolchevique de outubro de 1917, Protazanov
permaneceu exilado na Europa até ser persuadido a retornar à União Soviética em
1923 para produzir esse estranho e curioso sci fi.
Definitivamente, “Aelita” é um filme de
propaganda à causa da Revolução Socialista onde exorta os camaradas
revolucionários a abandonarem fantasias e utopias para se entregar ao duro
cotidiano da reconstrução do país. Mas Protazanov constrói a utopia marciana
com uma estética de vanguarda construtivista e futurista tão vibrante e
sedutora que acabou, nas entrelinhas, inspirando o futuro gênero
cinematográfico.
O filme começa quando cientistas em toda parte do
mundo recebem uma mensagem de rádio misteriosa e indecifrável vinda do espaço
sideral. O engenheiro Loss e seu amigo Spiridinov são um dos vários cientistas
que recebem a mensagem. Loss é um sonhador individualista e remanescente da
antiga burguesia intelectual russa. Ele passa a ficar obcecado pela questão da
origem e significado da mensagem. A ação passa então para Marte quando
conhecemos Aelita, filha de Tuskub, ditador de um futurista estado totalitário
que oprime uma classe trabalhadora que é armazenada em gigantescos congeladores
em estado criogênico como reservatórios de força de trabalho.
Secretamente Aelita observa a Terra através de um
novo e potente telescópio para observar o cotidiano russo e acaba se
apaixonando por Loss. Os grandiosos cenários e roupas marcianas são concebidos
através de uma fantástica estilização artística de vanguarda futurista e
construtivista russo.
A obsessão de Loss cria essa fantasia de que uma
aristocrata marciana o observa. Principalmente quando seu casamento entra em
crise quando suspeita que sua esposa Natasha está caindo sob os encantos de um
aristocrata oportunista chamado Erlich. Ele é um corrupto que cria um mercado
paralelo de tickets de racionamento de alimentos.
Outro fato surpreendente é que “Aelita” mostra o
duro cotidiano da reconstrução do país sob a União Soviética: o racionamento de
alimentos, o rígido controle da burocracia do Estado representados pelos
membros da NEP (Nova Política Econômica de Lênin) onde Natasha é um dos membros
que controla provisões e moradias para todos, deslocamento de grandes massas em
trens superlotados, caos, disfuncionalidade e, sobretudo, a corrupção
representada pela figura do ex-aristocrata Erlich.
A obsessão de Loss leva a se concentrar em um
projeto de construção de uma espaçonave que o leve a Marte. Enquanto isso
Aelita em Marte está envolvida em intrigas palacianas que envolvem o
ultra-secreto telescópio de alta resolução onde ela observa a Terra às
escondidas.
A maior parte das sequências do filme se passa em
Moscou. O que ocorre em Marte é eventualmente mostrado como fosse uma ilusão
criada pelo estado de insatisfação de Loss, um intelectual que ainda não
compreendeu seu papel dentro da revolução em andamento no país e que ainda se
consome em sonhos pessoais. Mas as sequências do palácio da corte marciana
causam impacto pelo arrojo e modernidade.
A estética moderna do futuro
O que impressiona em “Aelita” é que vemos nas
sequências marcianas o início da construção no cinema da visão do futuro:
planetas desconhecidos, robôs, tecnologias ultra-sofisticadas e inacessíveis
para nós. Linhas angulosas e inclinadas que nos faz lembrar os futuros cenários
do cinema expressionista alemão, estética clean com muitos vidros e
transparências, roupas prateadas e cortes geométricos ousados, acessórios
poligonais que acompanham o movimento do corpo dos personagens.
Embora a lição da nova moralidade revolucionária
socialista seja, no filme, condenar essas imagens como utopias fantasiosas de
um burguês alienado, Protazanov confere tanta força às sequências marcianas que
fica impossível não se fascinar diante de um planeta que é o oposto do caos e
disfuncionalidade mostrados no cotidiano de Moscou.
Os cenários e figurinos marcianos fazem uma
síntese do futuro concebido pelas vanguardas artísticas do começo do século
(Bauhaus, Futurismo italiano, etc) com a monumentalidade das formas angulosas
de concreto, a leveza das transparências e o prateado como a cor da velocidade
e arrojo, a cor dos mísseis e foguetes. Um futuro que, para nós do século XXI,
soa como retro diante da nossa estética atual neobarroca sobre o futuro: aliens
gosmentos, tentaculares e disformes; naves espaciais que mais parecem ferros-velhos
voadores sujos e disfuncionais como em “Alien – o Oitavo Passageiro” (1979) ou
“Prometheus” (2012); visões futuristas pós-apocalipse etc.
Imagens marcianas de Protazanov acabaram
tornando-se tão atemporais que, vez ou outra, retornam como estética nostálgica
na moda e música como na geométrica moda New Wave nos anos 1980 ou em bandas de
rock de garagem atuais como “Man or Astroman” que homenageia em seus shows
filmes de ficção científica como esse.
O simbolismo marciano
Mas tão atemporal quanto a visão de futuro criado
por Protazanov, é o simbolismo de Marte para a cultura ocidental. O livro do
escritor inglês H. G. Wells “Guerra dos Mundos” de 1892 pode ser considerado o
marco inaugural dessa “literatura sobre invasões”: a Inglaterra vitoriana é
surpreendida pela invasão marciana, seres tecnologicamente tão superiores que,
para eles, nós nada mais seríamos do que formigas esmagadas sem a menor
piedade.
A metáfora da invasão marciana era uma visão
crítica de Wells sobre o imperialismo britânico que estava no auge beligerante
quando do lançamento do livro – Wells mais tarde seria um simpatizante da
Revolução Bolchevique de 1917 e de toda ideologia socialista, até conhecer
Stalin...
O potente telescópio de alta definição dos
marcianos em “Aelita” que observa atentamente o cotidiano terrestre fará parte
desse imaginário da invasão e que criará uma complicada relação da cultura
ocidental com o “Outro” e a “Alteridade”.
O pânico de milhares de ouvinte provocado em 1938
pela adaptação radiofônica de Guerra dos Mundos por Orson Welles na rádio CBS
em Nova York que acreditavam estar sendo invadidos por marcianos que há anos
planejavam a invasão com seus potentes telescópios foi a consolidação desse
imaginário coletivo.
Após a Segunda Guerra Mundial e a primeira
aparição dos discos voadores nos noticiários, duas hipóteses foram
imediatamente apresentadas para o público: ou eles vieram de Marte ou da União
Soviética, o que dava na mesma dentro desse imaginário da invasão – em culturas
imperialistas (no caso a da sociedade de consumo norte-americana) o medo do
Outro se torna cada vez mais potencializado pelo imaginário midiático.
Por outro lado, Marte e de resto todos os
planetas como comprova a astrologia de massas, acabam se tornado espelhos ou
projeções de fatos bem demasiadamente humanos: em “Aelita” a fantasia marciana
criada pelo protagonista Loss é, na verdade, uma projeção de toda a frustração
de um burguês no caos de uma revolução proletária. Loss projeta na rainha de
Marte tudo aquilo que falta a sua esposa Natasha (uma voluntariosa ativista da
NEP).
Após chegar em Marte e ficar diante dela,
comporta-se como um adolescente narcisista, liderando ao seu lado uma revolução
socialista marciana menos por ideologia e muito mais pela obsessão juvenil.
Como o seu companheiro de viagem espacial dirá a certa altura do filme “uma
revolução socialista liderada por uma rainha não vai dar certo!”.
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