Direção: George Sluizer
Roteiro: Tim Krabbé (baseado em seu
livro), George Sluizer
Produção: Anne
Lordon, George Sluizer
Elenco: Bernard-Pierre
Donnadieu, Gene Bervotes, Johanna ter Steege, Gwen Eckhaus, Bernardette Le
Saché
Talvez você, como eu, tenha assistido
primeiro a refilmagem americana de O Silêncio do Lago de 1993, com
Jeff Bridgers, Kiefer Sutherland e Sandra Bullock no elenco, em algum momento
nos anos 90, na Tela Quente ou Supercine da TV Globo. E deve pensar: aaaaah
sim, é um filme de suspense dos mais meia boca! Abuse de sua capacidade de
memória seletiva e esqueça tudo sobre a versão yankee ao assistir a
produção franco-holandesa original do diretor George Sluizer. Baseado no livro
de Tim Krabbé chamado “The Golden Egg” (em tradução literal, o ovo dourado,
metáfora que é utilizada constantemente no filme), a fita facilmente é um dos thrillers mais
aterrorizantes e misteriosos já feitos. Não a toa ganhou o prêmio de Melhor
Filme no Dutch Critics Award de 1988. O brilhantismo de O Silêncio do
Lago pode ser apontado em dois exemplos desconcertantes. O primeiro é a
ruptura dos elementos padrões dos filmes de suspense convencionais. Antes de
sua metade já conhecemos quem é o vilão e suas motivações. Não há aquele clichê
característico do gênero, nada que lembre as tramas à la Edgar Wallace, nada de
investigações mirabolantes que revela a identidade do criminoso no final. O
segundo é a forma metódica, fria e nada convencional (incluindo aí as elipses
de tempo e a narrativa não linear) que conduzem de forma inexorável o
personagem para o seu final surpreendente, épico e completamente pessimista
(algo que a refilmagem conseguiu de forma brilhantemente – e engraçado que
também foi dirigida por Sluizer, mas sacumé…). Volto a falar do final mais
tarde, com o devido alerta de spoiler. O que se inicia como um road
movie do casal Rex Hofman (Gene Bervoets) e Saskia Wagter (Johanna ter
Steege), torna-se um ensaio sobre a obsessão e paranoia. Ao pararem em um posto
de gasolina, Saskia simplesmente desaparece ao ir sozinha comprar refrigerante
e cerveja. Como a garota não retorna, um medo primal e desespero toma conta de
Rex, que há pouco havia feito uma promessa de nunca mais abandoná-la (o que
remete a sua atitude escrota na memorável cena do túnel no começo do filme). E
isso irá definir sua vida nos próximos três anos. Rex continua procurando pela
garota desaparecida, apelando de todas as formas possíveis, como colar cartazes
em árvores e aparecer na televisão. Só falta mesmo colocar a foto da moça nas
caixas de leite. Assim como para o espectador não há uma noção de passagem de
tempo, feito um corte brusco para o futuro, para Rex também não há, pois ele
está ali preso naquele espaço-tempo contínuo de sua busca pela amada, levando
sua vida ao buraco, impedindo qualquer tipo de novo relacionamento e lhe
trazendo prejuízo financeiro. Agora voltamos ao nosso sequestrador, que é a
verdadeira cereja do bolo de O Silêncio do Lago. Raymond Lemorne (interpretado
de forma nada menos que brilhante por Bernard-Pierre Donnadieu) é um professor
de química, casado, com duas filhas, que tem uma vida completamente normal, mas
que na verdade é um sociopata que fica imaginando se seria capaz de atos de
maldade (inspirados por dois momentos de sua vida: quando pulou deliberadamente
de uma janela na infância e quando salvou uma garotinha de se afogar já adulto,
mas sentiu prazer no sofrimento da menina em deixar a boneca no lago) e
desvirtuar o status quo de sua vidinha medíocre. O plano, executado e
treinado à exaustão, de forma metódica, calma e com serenidade angustiante
(Raymond esquematiza tudo, dramatiza a cena, faz contas e mais contas sobre o
tempo de ação do clorofórmio versus a quilometragem até chegar a sua casa do
lago, etc) é raptar uma mulher, usando uma desculpa até das mais esfarrapadas
(que acaba se concretizando de forma deliciosamente revoltante apenas por um
golpe de sorte do destino para ele, e de azar para Saskia e Rex) e infligir a
vítima o seu pior medo: claustrofobia. Raymond é a epítome da banalização do
mal e suas tentativas e maquinações são de um humor negro capaz de gerar
risinhos nervosos no espectador, que acompanha angustiado sua missão sombria.
Depois do rapto, não há escapatória. O destino do personagem principal é um
trem desgovernado que você é obrigado a assistir de camarote. O vilão se mostra
para o herói, que simplesmente não consegue se livrar de sua fixação
compulsiva, e aceita a bizarra condição de Raymond: para descobrir o que aconteceu
com Saskia, terá de passar pelo mesmo que ela. A cena da árvore na chuva mostra
bem o desespero de Rex, que apesar de saber das consequências, é obrigado a
passar por isso, eliminando algo que o atormentava a tanto tempo, qualquer que
fosse o preço. É tipo você TER DE tirar de qualquer jeito com a língua aquela
carninha que fica presa no dente do fundo, elevado à enésima potência.
ALERTA
DE SPOILER. Pule para o próximo parágrafo ou leia por sua conta e risco.
A cena final é simplesmente aterradora (ainda
mais se você também for claustrofóbico) quando Rex é enterrado vivo e liga seu
isqueiro, vendo-se preso à sete palmos em um caixão de madeira. Enquanto a luz
diminui, ele solta uma risada doentia, pontuada pelo avanço da escuridão e a
lembrança ao encontrar Saskia no túnel lá no começo, onde todos os
acontecimentos fatídicos daquelas férias começaram, quando o carro deles quebra
e independente dos apelos e choro da moça, ele a deixa sozinha no escuro. O
ciclo das mórbidas coincidências do destino se fecha. Não antes de vermos a
cara impassível de Raymond, que simplesmente se safa dessa incólume. Um detalhe
interessante é que o livro de Krabbé (que também escreveu o roteiro junto com o
diretor) é baseado em uma história real que leu em um jornal, sobre o
desaparecimento de uma turista após comprar chiclete em um posto de gasolina na
França. Dez anos depois, Krabbé fez uma extensiva pesquisa sobre o
desaparecimento, após a polícia procurar pela garota exaustivamente por dois
dias, e descobriu que ela estava viva e na verdade só tinha pego o ônibus
errado. Como se não bastasse a história inquietante e a forma como ela se
desenrola e prende o espectador, a direção de Sluizer é primorosa, com sua
movimentação de câmera, sua narrativa não linear e sua óbvia referência a
Alfred Hitchcock. Isso sem contar as atuações acima de qualquer média e os
diálogos precisos, principalmente entre Rex e Raymond. Tudo isso somado faz O
Silêncio do Lago a gema do suspense que ele é.
FONTE: https://101horrormovies.com/2014/11/19/569-o-silencio-do-lago-1988/
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