terça-feira, 26 de abril de 2016

#569 1988 O SILÊNCIO DO LAGO (Spoorloos / The Vanishing, Holanda, França)


Direção: George Sluizer
Roteiro: Tim Krabbé (baseado em seu livro), George Sluizer
Produção: Anne Lordon, George Sluizer
Elenco: Bernard-Pierre Donnadieu, Gene Bervotes, Johanna ter Steege, Gwen Eckhaus, Bernardette Le Saché

Talvez você, como eu, tenha assistido primeiro a refilmagem americana de O Silêncio do Lago de 1993, com Jeff Bridgers, Kiefer Sutherland e Sandra Bullock no elenco, em algum momento nos anos 90, na Tela Quente ou Supercine da TV Globo. E deve pensar: aaaaah sim, é um filme de suspense dos mais meia boca! Abuse de sua capacidade de memória seletiva e esqueça tudo sobre a versão yankee ao assistir a produção franco-holandesa original do diretor George Sluizer. Baseado no livro de Tim Krabbé chamado “The Golden Egg” (em tradução literal, o ovo dourado, metáfora que é utilizada constantemente no filme), a fita facilmente é um dos thrillers mais aterrorizantes e misteriosos já feitos. Não a toa ganhou o prêmio de Melhor Filme no Dutch Critics Award de 1988. O brilhantismo de O Silêncio do Lago pode ser apontado em dois exemplos desconcertantes. O primeiro é a ruptura dos elementos padrões dos filmes de suspense convencionais. Antes de sua metade já conhecemos quem é o vilão e suas motivações. Não há aquele clichê característico do gênero, nada que lembre as tramas à la Edgar Wallace, nada de investigações mirabolantes que revela a identidade do criminoso no final. O segundo é a forma metódica, fria e nada convencional (incluindo aí as elipses de tempo e a narrativa não linear) que conduzem de forma inexorável o personagem para o seu final surpreendente, épico e completamente pessimista (algo que a refilmagem conseguiu de forma brilhantemente – e engraçado que também foi dirigida por Sluizer, mas sacumé…). Volto a falar do final mais tarde, com o devido alerta de spoiler. O que se inicia como um road movie do casal Rex Hofman (Gene Bervoets) e Saskia Wagter (Johanna ter Steege), torna-se um ensaio sobre a obsessão e paranoia. Ao pararem em um posto de gasolina, Saskia simplesmente desaparece ao ir sozinha comprar refrigerante e cerveja. Como a garota não retorna, um medo primal e desespero toma conta de Rex, que há pouco havia feito uma promessa de nunca mais abandoná-la (o que remete a sua atitude escrota na memorável cena do túnel no começo do filme). E isso irá definir sua vida nos próximos três anos. Rex continua procurando pela garota desaparecida, apelando de todas as formas possíveis, como colar cartazes em árvores e aparecer na televisão. Só falta mesmo colocar a foto da moça nas caixas de leite. Assim como para o espectador não há uma noção de passagem de tempo, feito um corte brusco para o futuro, para Rex também não há, pois ele está ali preso naquele espaço-tempo contínuo de sua busca pela amada, levando sua vida ao buraco, impedindo qualquer tipo de novo relacionamento e lhe trazendo prejuízo financeiro. Agora voltamos ao nosso sequestrador, que é a verdadeira cereja do bolo de O Silêncio do Lago. Raymond Lemorne (interpretado de forma nada menos que brilhante por Bernard-Pierre Donnadieu) é um professor de química, casado, com duas filhas, que tem uma vida completamente normal, mas que na verdade é um sociopata que fica imaginando se seria capaz de atos de maldade (inspirados por dois momentos de sua vida: quando pulou deliberadamente de uma janela na infância e quando salvou uma garotinha de se afogar já adulto, mas sentiu prazer no sofrimento da menina em deixar a boneca no lago) e desvirtuar o status quo de sua vidinha medíocre. O plano, executado e treinado à exaustão, de forma metódica, calma e com serenidade angustiante (Raymond esquematiza tudo, dramatiza a cena, faz contas e mais contas sobre o tempo de ação do clorofórmio versus a quilometragem até chegar a sua casa do lago, etc) é raptar uma mulher, usando uma desculpa até das mais esfarrapadas (que acaba se concretizando de forma deliciosamente revoltante apenas por um golpe de sorte do destino para ele, e de azar para Saskia e Rex) e infligir a vítima o seu pior medo: claustrofobia. Raymond é a epítome da banalização do mal e suas tentativas e maquinações são de um humor negro capaz de gerar risinhos nervosos no espectador, que acompanha angustiado sua missão sombria. Depois do rapto, não há escapatória. O destino do personagem principal é um trem desgovernado que você é obrigado a assistir de camarote. O vilão se mostra para o herói, que simplesmente não consegue se livrar de sua fixação compulsiva, e aceita a bizarra condição de Raymond: para descobrir o que aconteceu com Saskia, terá de passar pelo mesmo que ela. A cena da árvore na chuva mostra bem o desespero de Rex, que apesar de saber das consequências, é obrigado a passar por isso, eliminando algo que o atormentava a tanto tempo, qualquer que fosse o preço. É tipo você TER DE tirar de qualquer jeito com a língua aquela carninha que fica presa no dente do fundo, elevado à enésima potência.
ALERTA DE SPOILER. Pule para o próximo parágrafo ou leia por sua conta e risco.
A cena final é simplesmente aterradora (ainda mais se você também for claustrofóbico) quando Rex é enterrado vivo e liga seu isqueiro, vendo-se preso à sete palmos em um caixão de madeira. Enquanto a luz diminui, ele solta uma risada doentia, pontuada pelo avanço da escuridão e a lembrança ao encontrar Saskia no túnel lá no começo, onde todos os acontecimentos fatídicos daquelas férias começaram, quando o carro deles quebra e independente dos apelos e choro da moça, ele a deixa sozinha no escuro. O ciclo das mórbidas coincidências do destino se fecha. Não antes de vermos a cara impassível de Raymond, que simplesmente se safa dessa incólume. Um detalhe interessante é que o livro de Krabbé (que também escreveu o roteiro junto com o diretor) é baseado em uma história real que leu em um jornal, sobre o desaparecimento de uma turista após comprar chiclete em um posto de gasolina na França. Dez anos depois, Krabbé fez uma extensiva pesquisa sobre o desaparecimento, após a polícia procurar pela garota exaustivamente por dois dias, e descobriu que ela estava viva e na verdade só tinha pego o ônibus errado. Como se não bastasse a história inquietante e a forma como ela se desenrola e prende o espectador, a direção de Sluizer é primorosa, com sua movimentação de câmera, sua narrativa não linear e sua óbvia referência a Alfred Hitchcock. Isso sem contar as atuações acima de qualquer média e os diálogos precisos, principalmente entre Rex e Raymond. Tudo isso somado faz O Silêncio do Lago a gema do suspense que ele é.
FONTE: https://101horrormovies.com/2014/11/19/569-o-silencio-do-lago-1988/

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