Como um filme sobre uma autópsia pode
ser considerado um dos mais relevantes do ano?
Nos Estados Unidos, dão-se os nomes John Doe ou Jane Doe para homens e mulheres, respectivamente, cujos corpos foram
encontrados sem identidade ou sem alguém para reclamá-los, algo similar ao
nosso “Zé Ninguém”. O viking norueguês André Øvredal, homem por trás do fascinante O Caçador de Troll, nos leva à um necrotério para
assistirmos à autópsia de uma Jane Doe, cuja causa de morte só não é mais misteriosa que sua identidade. The Autopsy of Jane Doe é um longa que se beneficia do
desconhecido e do enigmático em sua construção, o que me leva a um apelo: não
assista aos trailers! Preserve sua experiência ao máximo. Os minutos iniciais
do longa cumprem uma função absolutamente brilhante, raramente notada em outros
fitas do gênero. Policiais e peritos transitam em uma casa na qual várias
vítimas de um crime bárbaro estão dispostas em horríveis pinturas macabras. Com
sinais de confronto e paredes pintadas de vermelho-sangue, é como um pesadelo,
aparentemente incompreensível. No meio disso tudo, o elemento mais intrigante é
um corpo feminino nu e bem conservado, parcialmente escavado de uma cova
improvisada no porão. É nesse contexto que uma policial profere uma frase
agourenta que pontua toda a atmosfera que se constrói a seguir: “Não me parece
que alguém tenha invadido a casa. Acho que os moradores estavam tentando escapar”.
Ou algo semelhante. Essa simples ideia suscita uma série de outros pensamentos
que por si só são arrepiantes. Após esse encontro inicial, o corpo da jovem é
desenterrado e levado até um necrotério onde pai, interpretado por Brian Cox e
filho, vivido por Emile Hirsch, ambos médicos legistas, trabalham juntos em uma
relação que é, no mínimo, passivo-agressiva, marcada por constantes desafios. O
enquadramento milimétrico utilizado por Øvredal retrata o espaço em
questão como um local de organização que beira a obsessão. Não há nada fora do
posição nesse necrotério/casa funerária. A composição asséptica de cenário e
quadro remete à uma tentativa de confrontar a própria ideia da morte, como se
fosse possível fazê-lo optando pela ordem em prol do caos. Porém, o espaço
ainda representa uma provocação por si só. Lugares que, por natureza, estão
conectados a morte, nos são objeto de temor e distanciamento, como se estes
carregassem uma carga negativa muito grande – falo de cemitérios, casas
funerárias e necrotérios em geral. Inteiramente situado em um necrotério, o
longa traz essa carga entrelaçada em sua existência, exatamente por se tratar
de um ambiente que sabemos ser real, mas precisamos evitar. Segue-se então uma
questão ainda mais assustadora: o corpo humano. O trabalho investigativo de
autópsia é, antes de tudo, um processo de desconstrução da forma humana que,
neste ponto, já aparenta estar destituído de personalidade. O cadáver é um
receptáculo vazio e misterioso, no qual se inserem as memórias e afetos dos
vivos. E esse é, ainda, objeto de medos e anseios, inerentes à própria relação
do homem com a morte. Em um determinado momento, o personagem de Cox explica à
uma jovem que, nos primórdios do trabalho de necrópsia, os médicos amarravam
sinos nos calcanhares dos falecidos, para o caso de algum deles manifestar
sinais de vida e não ser levado para a mesa de autópsia por acidente. Aqui
Øvredal brinca com a expectativa do público, que imediatamente passa a
conjecturar as possibilidades de um morto com um sino no pé. “E se esse sino
tocar” ou ainda “quando será que esse sino irá tocar?”. Não só utiliza-se do
corpo humano como objetivo de pavor, mas Øvredal lida com uma questão ainda
mais delicada, que é a relação do homem com o feminino para além do sexo. O
enigma não reside apenas na identidade ou causa de morte, mas na própria forma
da mulher, que aparenta ser indecifrável aos olhos de homens de gerações
distintas e experiências diferentes. Não é mera coincidência que, em uma época
de elevação da voz da mulher em inúmeros níveis, apareça um filme que coloque
homens completamente a mercê de uma figura feminina. Sabiamente, Jane Doe nunca
é explorada de forma voyeurística, mas sim com um ar de estranhamento que
representa muito bem essa situação. Tudo parece fora de lugar, biologicamente
indecifrável e sem sentido.
ALERTA
DE SPOILER
Não somente mulher, Jane Doe é também
uma bruxa, ou alguém que foi acusada de o ser, o que torna impossível não citar A Bruxa, de Robert Eggers na
discussão. Como mencionado no parágrafo anterior, a posição da mulher tem se
transformado por meio de uma luta constante, e qual imagem associada ao terror
mais remete à ideia da mulher liberta e consciente de si mesma que a bruxa?
Outros filmes como The Blackcoat’s Daughter, O Demônio de Neon, Águas Rasas e The Eyes of My Mother, por exemplo, afiguram-se a este tema. Em uma primeira análise do
cinema de horror em 2016, a feminilidade ressignificada parece ser um tema
primordial, talvez atrás apenas do ressurgimento do mal
sobrenatural-espiritual. FIM DO SPOILER
Para além dessas questões, The
Autopsy de Jane Doe se sobressai pela eficácia com
que trabalha esses temas para criar um horror genuinamente assustador, sem poréns.
Não há necessidade de uma predileção por obras mais artísticas ou lentas. Este
é perfeitamente capaz de assustar-agradar todos os públicos possíveis do
gênero, desde os que admiraram A Bruxa aos que se apegaram aos sustos de Invocação do Mal 2. Acima de todas as metáforas, significados e do ocultismo, aqui
há um longa paradoxalmente simples e complexo, mas eficiente, que sabe lidar
com o medo e manipulá-lo em benefício próprio, por meio de uma atmosfera
elaborada e jogos mentais. Durante boa parte do longa, acreditei estar de
frente para um possível clássico moderno do horror, no mínimo digno de ser um
dos três melhores de 2016. Infelizmente, o terceiro ato mostrou-se um pouco
abaixo do que havia sido exposto até então, muito por se entregar demais ao
convencional e a previsibilidade. A grande revelação e suas consequências
acabam ficando a mercê de uma confusão generalizada, que é até interessante,
mas não no mesmo patamar do que havia sido apresentado até então. Independentemente
deste final aquém do esperado, a obra em sua totalidade é assombrosa. Mais uma
adição a crescente lista de ótimos títulos de terror lançados no ano que acabou
há três dias, que se destaca não só por sua qualidade, mas por sua relevância e
importância para a compreensão do momento histórico em que se encontra.
4 órgãos internos para The Autopsy of Jane Doe.
Daniel Rodriguez: Fã de
horror em suas diferentes formas, principalmente cinematográfica. Incapaz de
adentrar igrejas, pelo risco de combustão espontânea, dedica sua vida pagã a
ensinar inglês, escrever sobre o gênero e, mais recentemente, fazer seus
próprios filmes.
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