quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A AUTÓPSIA DE JANE DOE (The Autopsy of Jane Doe, EUA, 2016)


Como um filme sobre uma autópsia pode ser considerado um dos mais relevantes do ano?

Nos Estados Unidos, dão-se os nomes John Doe ou Jane Doe para homens e mulheres, respectivamente, cujos corpos foram encontrados sem identidade ou sem alguém para reclamá-los, algo similar ao nosso “Zé Ninguém”. O viking norueguês André Øvredal, homem por trás do fascinante O Caçador de Troll, nos leva à um necrotério para assistirmos à autópsia de uma Jane Doe, cuja causa de morte só não é mais misteriosa que sua identidade. The Autopsy of Jane Doe é um longa que se beneficia do desconhecido e do enigmático em sua construção, o que me leva a um apelo: não assista aos trailers! Preserve sua experiência ao máximo. Os minutos iniciais do longa cumprem uma função absolutamente brilhante, raramente notada em outros fitas do gênero. Policiais e peritos transitam em uma casa na qual várias vítimas de um crime bárbaro estão dispostas em horríveis pinturas macabras. Com sinais de confronto e paredes pintadas de vermelho-sangue, é como um pesadelo, aparentemente incompreensível. No meio disso tudo, o elemento mais intrigante é um corpo feminino nu e bem conservado, parcialmente escavado de uma cova improvisada no porão. É nesse contexto que uma policial profere uma frase agourenta que pontua toda a atmosfera que se constrói a seguir: “Não me parece que alguém tenha invadido a casa. Acho que os moradores estavam tentando escapar”. Ou algo semelhante. Essa simples ideia suscita uma série de outros pensamentos que por si só são arrepiantes. Após esse encontro inicial, o corpo da jovem é desenterrado e levado até um necrotério onde pai, interpretado por Brian Cox e filho, vivido por Emile Hirsch, ambos médicos legistas, trabalham juntos em uma relação que é, no mínimo, passivo-agressiva, marcada por constantes desafios. O enquadramento milimétrico utilizado por  Øvredal retrata o espaço em questão como um local de organização que beira a obsessão. Não há nada fora do posição nesse necrotério/casa funerária. A composição asséptica de cenário e quadro remete à uma tentativa de confrontar a própria ideia da morte, como se fosse possível fazê-lo optando pela ordem em prol do caos. Porém, o espaço ainda representa uma provocação por si só. Lugares que, por natureza, estão conectados a morte, nos são objeto de temor e distanciamento, como se estes carregassem uma carga negativa muito grande – falo de cemitérios, casas funerárias e necrotérios em geral. Inteiramente situado em um necrotério, o longa traz essa carga entrelaçada em sua existência, exatamente por se tratar de um ambiente que sabemos ser real, mas precisamos evitar. Segue-se então uma questão ainda mais assustadora: o corpo humano. O trabalho investigativo de autópsia é, antes de tudo, um processo de desconstrução da forma humana que, neste ponto, já aparenta estar destituído de personalidade. O cadáver é um receptáculo vazio e misterioso, no qual se inserem as memórias e afetos dos vivos. E esse é, ainda, objeto de medos e anseios, inerentes à própria relação do homem com a morte. Em um determinado momento, o personagem de Cox explica à uma jovem que, nos primórdios do trabalho de necrópsia, os médicos amarravam sinos nos calcanhares dos falecidos, para o caso de algum deles manifestar sinais de vida e não ser levado para a mesa de autópsia por acidente. Aqui  Øvredal brinca com a expectativa do público, que imediatamente passa a conjecturar as possibilidades de um morto com um sino no pé. “E se esse sino tocar” ou ainda “quando será que esse sino irá tocar?”. Não só utiliza-se do corpo humano como objetivo de pavor, mas Øvredal lida com uma questão ainda mais delicada, que é a relação do homem com o feminino para além do sexo. O enigma não reside apenas na identidade ou causa de morte, mas na própria forma da mulher, que aparenta ser indecifrável aos olhos de homens de gerações distintas e experiências diferentes. Não é mera coincidência que, em uma época de elevação da voz da mulher em inúmeros níveis, apareça um filme que coloque homens completamente a mercê de uma figura feminina. Sabiamente, Jane Doe nunca é explorada de forma voyeurística, mas sim com um ar de estranhamento que representa muito bem essa situação. Tudo parece fora de lugar, biologicamente indecifrável e sem sentido.

ALERTA DE SPOILER 

Não somente mulher, Jane Doe é também uma bruxa, ou alguém que foi acusada de o ser, o que torna impossível não citar A Bruxa, de Robert Eggers na discussão. Como mencionado no parágrafo anterior, a posição da mulher tem se transformado por meio de uma luta constante, e qual imagem associada ao terror mais remete à ideia da mulher liberta e consciente de si mesma que a bruxa? Outros filmes como The Blackcoat’s Daughter, O Demônio de Neon, Águas Rasas e The Eyes of My Mother, por exemplo, afiguram-se a este tema. Em uma primeira análise do cinema de horror em 2016, a feminilidade ressignificada parece ser um tema primordial, talvez atrás apenas do ressurgimento do mal sobrenatural-espiritual. FIM DO SPOILER

Para além dessas questões, The Autopsy de Jane Doe se sobressai pela eficácia com que trabalha esses temas para criar um horror genuinamente assustador, sem poréns. Não há necessidade de uma predileção por obras mais artísticas ou lentas. Este é perfeitamente capaz de assustar-agradar todos os públicos possíveis do gênero, desde os que admiraram A Bruxa aos que se apegaram aos sustos de Invocação do Mal 2. Acima de todas as metáforas, significados e do ocultismo, aqui há um longa paradoxalmente simples e complexo, mas eficiente, que sabe lidar com o medo e manipulá-lo em benefício próprio, por meio de uma atmosfera elaborada e jogos mentais. Durante boa parte do longa, acreditei estar de frente para um possível clássico moderno do horror, no mínimo digno de ser um dos três melhores de 2016. Infelizmente, o terceiro ato mostrou-se um pouco abaixo do que havia sido exposto até então, muito por se entregar demais ao convencional e a previsibilidade. A grande revelação e suas consequências acabam ficando a mercê de uma confusão generalizada, que é até interessante, mas não no mesmo patamar do que havia sido apresentado até então. Independentemente deste final aquém do esperado, a obra em sua totalidade é assombrosa. Mais uma adição a crescente lista de ótimos títulos de terror lançados no ano que acabou há três dias, que se destaca não só por sua qualidade, mas por sua relevância e importância para a compreensão do momento histórico em que se encontra.
4 órgãos internos para The Autopsy of Jane Doe.

Daniel Rodriguez: Fã de horror em suas diferentes formas, principalmente cinematográfica. Incapaz de adentrar igrejas, pelo risco de combustão espontânea, dedica sua vida pagã a ensinar inglês, escrever sobre o gênero e, mais recentemente, fazer seus próprios filmes.

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