TERROR 2017 46 A
GHOST
STORY
Melancolia e tristeza infinita
Qual a representação
máxima de um fantasma?
Um lençol alvo com
dois furos no lugar dos olhos! Tem até emoji disso! Uma alegoria simples e
inocente, que as crianças adoram usar, incapaz de assustar alguém. Isso até
David Lowery meter Casey Affleck, o irmão recém-oscarizado de Ben, em uma
dessas fantasias pueris e nos entregar seu A Ghost Story. Mas não leve o
verbo assustar ao pé da letra não, porque o terror aqui não tem nada a ver com
o que as assombrações estão acostumadas a praticar nos filmes do gênero. Aliás,
para começo de conversa, A Ghost Story é um thrillerexistencialista, um
drama com elementos de terror e fantástico. O termo que eu usei ali em cima, na
verdade, aqui se aplica na mensagem da efemeridade da vida em um tocante conto
sobre amor, perda e o desapego, que transcende o tempo/espaço físico. Aliás,
quem nunca se pegou pensando, deitado em sua cama olhando para o teto em
momentos de luto, como lidar com o buraco existencial da saudade daqueles que
nos deixaram? Ou mesmo, como seria a vida sem a gente neste plano, depois de
morrermos? Ou então, para não ficar no espectro mais espiritualista, ficou
imaginando como é a rotina das pessoas depois que uma relação acaba e ela vai
embora. Sem saber que rumo e decisões tomar e sobrevivendo apenas como uma
“aparição”? Para Lowery, a obsessão e o apego carnal ou sentimental, tão
profundamente enraizados na nossa cultura judaico-cristã ou no kardecismo, só
prova o quanto nossa existência é ínfima (corroborada pelo poderoso e longo
discurso niilista do personagem de Will Oldham em uma festa) perante ao rolo
compressor que é a força do universo, da natureza e da passagem de tempo, e que
por mais que a gente se ache importante ou necessário, a verdade é que o mundo
vai continuar girando ali sem a nossa presença. Ponto! Esses mesmos sentimentos
tão poderosos são o que levam o espírito de Affleck por debaixo do lençol a
voltar dos mortos após um acidente de carro, e retornar a casa onde morava com
sua esposa, interpretada por Rooney Mara. Ali naquele local, onde em vida,
relutantemente refuta a ideia de se mudar. Mesmo após a morte, continua preso
ali, tentando desesperadamente se conectar a ela novamente, que lida com o
processa de luto pela morte do amado. Após a partida dela, num processo
definitivo para se livrar do pesar, acompanhamos de perto o estoicismo
silencioso do fantasma em sua amargura pungente (é impressionante a capacidade
de Affleck em transbordar um mar de angústia e solidão sem que consigamos ao
menos ver suas expressões sequer uma vez por baixo do lençol). Agarrado àquela
condição que o impossibilita de desencarnar, tenta desesperadamente, por anos a
fio, ler o bilhete deixado por Mara na fresta de uma parede, que não consegue
pegar com as mãos cobertas pelo pano, transformando numa nova obsessão que o
torna incapaz de descansar, enquanto o tempo vai passando sem piedade. A Ghost
Story foi o reflexo psicológico do momento que David Lowery vivia, segundo
entrevista, quando estava surtando e passando por uma tremenda crise
existencial. O que fica bem explícito em tela. A melancolia é perene, te atinge
em cheio de forma angustiante, te sufoca, invadindo seu redor, tornando-o capaz
de cortar o ar com uma faca de rocambole enquanto assiste. Pois, quantas e
quantas vezes VOCÊ já não foi aquele fantasma? É uma baita introspecção sobre o
sentido da vida, de uma tristeza infinita e beleza poética, sobre como o
universo e as pessoas seguem inexoráveis à nossa presença – que a bem da
verdade, pode ser mais assustador que qualquer encosto, apesar de seu final, de
acalentar corações. Outro ponto que é bom destacar é que o longa é um
verdadeiro teste de paciência, num ritmo completamente arrastado, intimista, de
ausência quase completa de diálogos, música etérea, um trabalho de edição
primoroso e longuíssimas tomadas, como o quase insuportável plano sequência em
que vemos Rooney Mara por dez minutos comendo uma torta. Agora, o que há de se
levar em questão para os fãs do gênero, principalmente aqueles mais xiitas, é
onde a gente entra naquela eterna discussão broxa sobre “o que é um filme de
terror”, todo aquele blá-blá-blá, cagação de regra, e a masturbação com relação
ao famigerado PÓS-HORROR e a pobreza do cunho desse termo, que A Ghost
Story suscita. Fica absurdamente abaixo da escala do susto, do medo ou
qualquer clichê do horror que o valha – exceto quando o fantasma resolve
manifestar a ira de sua frustração de um forma física em cima da família de
latinos que se mudara para sua casa, a cena do necrotério, e vez ou outra ver
aquela figura voyeur ali estática
parada num canto dá uma sensação desconfortável. E de fato, se é um filme de
terror no sentido bíblico, pouco importa. É um dos melhores do ano, disparado,
e isso basta. A bagagem emocional
de cada um sobre os temas levantados, a sensibilidade fílmica e até
seu mood ao vê-lo é o que vai decretar se a experiência individual de
assistir A Ghost Story o fará colocá-lo na prateleira dos filmes que
adorou ou odiou. Para esse reles mortal que a terra um dia há de comer, foi uma
das mais lindas obras sobre amor, perda e… fantasmas vestidos com um lençol,
que já me deparei ultimamente.
5 lençóis com buracos
nos olhos para A Ghost Story
Fonte: http://101horrormovies.com.br/review-2017-46-a-ghost-story/
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