Ano
Passado em Marienbad
(Année
dernière à Marienbad, L', 1961)
Por Juliano
Mion, em 04/08/2008
Obra-prima
de Alain Resnais que foge dos convencialismos.
Ano
Passado em Marienbad é um filme difícil de digerir – aliás, dificílimo.
Contudo, não há razão para pânico agora: esta crítica não irá partir de uma
retórica acadêmica – pelo contrário. A “pretensão” aqui é outra, é a de
justamente abordá-lo de forma não-pretensiosa, oferecendo uma degustação do
filme, uma impressão, ou então uma pequena introdução a esta obra que é uma das
mais discutidas e controversas da história do cinema francês – e não seria
exagero dizer do cinema mundial. Este é um filme europeu por excelência, do
chamado “cinema de autor”, sendo frequentemente objeto de estudo em teses e
dissertações, costumeiramente citado na bibliografia sobre a teoria do cinema,
bem como caracteriza um daqueles longas que rendem centenas de artigos
científicos e análises pelo viés da semiótica e da filosofia. Mas reitero: este
não é (necessariamente) o caso.
Dirigido
por Alain Resnais, um dos mais importantes nomes no movimento de cinema francês
conhecido como Nouvelle Vague, que aconteceu em meados das décadas de 50 e 60 e
teve como principais expoentes os cineastas Jean-Luc Godard, François Truffaut
e o diretor do filme em questão, que por sua vez também tornou-se
conhecido pelo longa Hiroshima Meu Amor. O movimento, entre
muitas outras características (que renderiam um enorme artigo só para si),
elevava a figura do diretor de cinema ao cargo máximo imaginável dentro do
filme, este que passava a ser acima de tudo o reflexo dos seus anseios
artísticos, estéticos e pessoais, demonstrando sua visão particular de mundo. O
diretor passa a dispor da mesma autonomia que, por exemplo, obtiveram os
compositores de música erudita no período clássico, onde a obra não mais seria
feita simplesmente sob demanda, mas que, para ser dotada de legitimidade,
deveria originar-se de elementos mais subjetivos e intangíveis proporcionados
por seus autores. É interessante mencionar um pouco do contexto em que Ano
Passado em Marienbad surgiu para posteriormente ao menos compreender a sua
suposta inelegibilidade, principalmente se comparado ao “abecê” do cinema dito
vigente e comercial. Com o movimento da Nouvelle
Vague, haveria um evidente choque de valores, que confrontavam tanto com o
modelo de produção do cinema enquanto produto de uma indústria, mas que
inevitavelmente também trazia para a tela conseqüências na própria linguagem do
material produzido, rompendo com diversas tradições do modelo predominante que
fora forjado nos EUA, especialmente por D.W. Griffith, que de qualquer modo tem
seus reflexos ainda hoje.
Enfim,
mas vamos direto ao ponto. Filmada em preto e branco, a trama do filme é
apresentada por meio de uma gama de imagens ambientadas em um luxuoso palacete,
um hotel deslumbrante repleto de salões com seus lustres rebuscados, escadarias
vertiginosas, corredores infinitos e estatuas atemporais. Em meio a esse clima
de arquitetônicas paisagens imbuídas de um tom aristocrático, desenrola-se um
pouco trivial triângulo amoroso, onde um homem (denominado simplesmente como
“X”) tenta, a todo custo, fazer a mulher (personagem intitulada “A”) lembrar-se
do romance que teriam tido um ano antes. O problema é que a dama, na companhia
de seu marido (este por sua vez o “M”), de início sequer lembra de alguma
coisa. O curioso é o fato de que, apesar do impasse o qual vivencia, a mulher
ora sente-se repelida, ora atraída por aquele homem e pelos detalhes e
passagens que a faz rememorar e as sensações que lhe são invocadas.
Detalhes sutis como a sua mão que repousa sobre seu ombro, o espelho da
penteadeira, as estátuas, ou seja, todas as menções que o homem faz agem no
psiquismo da mulher de maneira que sua memória seja afetada, e sentimentos
materializados em imagens pouco convencionais venham involuntariamente à tona.
Tal qual como concebeu o escritor francês Marcel Proust na sua obra Em Busca do
Tempo Perdido, ainda no início do séc. XX, que fazia uso do recurso da “memória
involuntária”, como ficou bem exemplificado na célebre passagem do livro onde
apenas o sabor de uma Madeleine (bolinho típico francês) mergulhada no chá
poderia trazer as mais derradeiras sensações e lembranças.
O
filme, graças ao modo único como é conduzido, dada a sua narrativa singular e
seu não-comprometimento com a linearidade em toda a lógica cinematográfica
clássica, abre campo para as mais distintas reações e interpretações. É
possível acabar de assisti-lo com a (por vezes) deliciosa sensação de não ter
entendido nada, além de ter se deixado prazerosamente levar pelo seu
clima delirante e pelo esplendor de suas imagens – ou seja, simplesmente
deleitar-se. É possível, após o fim da exibição, estar com não só com a
plena sensação de entendimento como estar fervilhando de interpretações. Também
uma possibilidade a ser levada em conta ao estar diante do filme é a de ficar
simplesmente irado com tamanha barbárie de grafia cinematográfica, ou pior, nem
sequer ter paciência para concluir esta experiência. Contudo,
pessoalmente creio que o filme, assim como o imenso livro de Proust, é uma
obra que tem por finalidade principal discutir a forma de se pensar o tempo
(neste caso no cinema). A memória involuntária não restringe-se somente a uma
remomeração consciente dos fatos do passado, mas evoca também sensações,
possibilita revisitar um tempo e um sujeito que não existem mais. E a
transformação constante do sujeito passa a refletir na estrutura e na
estética da obra. O que justifica certos artifícios, como momentos
de repetição constante de certas ações – e ainda por cima em montagem
paralela. Desse modo, vale dizer que o filme é apresentado em escala tridimensional,
pois os elementos narrativos são expostos como fluxo de consciência, e cada
detalhe pode levar a uma progressiva desordem dos sentidos, como dizia o também
francês poeta Rimbaud.
Há
também, como bem discorre o pesquisador Arlindo Machado em seu livro
“Pré-Cinemas & pós-cinemas”, a questão da dualidade entre “cinema e sonho”
e “cinema e subconsciente” em Ano passado em Marienbad. Para Machado, este
filme é sem dúvida o mais onírico de toda a história do cinema. Uma vez que o
longa é todo permeado por constantes inserções de um suposto narrador e de
“vozes do além”, essas palavras da trilha sonora por assim dizer formam
fragmentos acústicos que retornam em vários momentos, nos contextos mais
diversos. Ao passo que passam da boca de um para a boca de outro personagem, são
proferidas em off, trazendo para o filme corpos e elementos ausentes, que na
minha opinião, estão dispostos bem à moda “proustiana”. Também com este
artifício, o diretor leva a discussão sobre até que ponto a fala e o som no
cinema estão ligados aos seus correspondentes, pois uma vez que estão de tal
modo fundidos com a imagem em um filme convencional, se deixam, em certo
sentido, serem “visualizados” petrificando-se aos seus objetos correspondentes.
Alain Resnais estava consciente do poder de fogo deste filme, a polêmica e a
discussão que poderia gerar, tanto como causou ao estrear no Festival de Cannes
em 1961 e como ainda permanece nos circuitos de estudo de cinema.
Uma
curiosidade deste filme é que, assim como por vezes acontece, foi elaborado um
remake compacto desta obra por meio de um videoclipe. Coube a banda inglesa
Blur, que também realizou algo semelhante no clipe da música “The Universal”
com Laranja Mecânica, levar Ano Passado em Marienbad ao clipe da canção
“To The End”, (https://youtu.be/Zlxj_LuggBY) que é simplesmente imperdível.
Vale a pena correr visualizá-lo no YouTube, onde com a mais absoluta perfeição
é recriada toda a atmosfera e todos os principais planos concebidos
por Alain Resnais, só que desta vez com a atuação dos integrantes da banda que,
ao lado do Oasis, reinou nos anos 90 com o gênero de rock
chamado britpop. O filme também foi surpreendentemente indicado para o
Oscar de melhor roteiro original em 1963 – o que evidencia que a academia por
vezes tem lampejos de ousadia e contempla obras que fogem do convencionalismo e
do dito conservador – que neste caso, é a pura vanguarda.
FONTE:
http://www.cineplayers.com/critica/ano-passado-em-marienbad/1389
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