domingo, 16 de agosto de 2015

#228 1970 O DESPERTAR DA BESTA (Brasil)


Direção: José Mojica Marins
Roteiro: Rubens F. Lucchetti, José Mojica Marins (história)
Produção: Giorgio Attilli, José Mojica Marins, George Michel Serkeis, Goffredo Telles Neto (Produtor Associado)
Elenco: José Mojica Marins, Mario Lima, Ozualdo Candeias, Andréa Bryan, Lurdes Vanucchi Ribas, Sérgio Hingst

José Mojica Marins já tem a pecha de cineasta marginal. E O Despertar da Besta é seu trabalho mais marginal. Filme agressivo, nonscense, delirante, todo entrecortado e fragmentado, com um fiapo de história que liga personagens que irão explodir numa sequência tétrica de um pesadelo visual e sonoro de estilos. O ano de produção era 1969, e o Brasil passava por um período negro de sua história, durante a ditadura militar. O clima ufanista, os confrontos com a polícia e exército, Costa e Silva já havia decretado o infame Ato Institucional 5 (o famoso AI5) e a censura descia o pau no cinema nacional, e claro que o subversivo O Despertar da Besta, que originalmente se chamaria Ritual de Sádicos, foi sumariamente proibido de ser exibido e ordenado que suas cópias fossem queimadas, sendo recuperado apenas na década de 80.Aqueles anos ficaram conhecidos pelo hedonismo inconsequente da contra cultura hippie, que aos poucos perdiam toda sua ideologia para uma orgia de drogas e cultos (vide, por exemplo, a ascensão da família Manson e por aí vai), a explosão da liberação sexual, a selvageria da Guerra do Vietnã, o uso pesado das drogas psicodélicas e o poder assustador das ditaduras na América do Sul. O grito de protesto de Mojica contra tudo e contra todos, veio da forma mais agressiva possível, sempre calcada no eterno conservadorismo do diretor (apesar dos apesares), e ataque aos costumes da sociedade. O uso das drogas é o alvo da vez de Mojica. O filme começa com inúmeras cenas de toda sorte de perversões sexuais e bizarrices que o uso de drogas (ou “tóchicos”) pode levar, degradando a família, a moral, os bons costumes, para uma orgia de depravação, uma bacanal de viciados, um ritual de taras. Com cenas fragmentadas, entrecortadas entre esses absurdos episódios e o depoimento do Dr. Sérgio (interpretado por Sérgio Hingst) em um programa de televisão, o médico, que acabara de escrever um popular livro sobre o assunto, questiona o valor “apocalíptico” do uso das substâncias ilícitas, enquanto exemplifica casos escabrosos, como de uma garota adolescente que fora morta em uma estranhíssima sessão de fetiche, quando era penetrada por uma tora gigantesca por uma espécie de sacerdote (!!!???), uma garota que fica nua para outros quatro homens que tem tesão em vê-la fazer suas necessidades em um penico, ou outra mulher que durante uma entrevista de emprego, é obrigada a fazer favores sexuais em um gorducho comendo macarrão escrotamente, enquanto ela o vê ora como porco, ora como cavalo. Neste mesmo programa, encontram-se outros entrevistadores, interpretador por Carlos Reichenbach e Maurice Capovilla, e um silencioso José Mojica Marins, que insiste que Zé do Caixão ficou no cemitério e ele está ali como cineasta. Nesse andar da carruagem, o confuso espectador demora em conseguir se habituar à falta de decoro narrativo naquelas diversas cenas bizarras e absurdas vomitadas em sua frente. Mas na segunda metade do filme, a narrativa de O Despertar da Besta começa a se desenvolver, com o obstinado Dr. Sérgio tentando corroborar de vez sua teoria, pegando quatro voluntários (aqueles mesmos que aparecem nas primeiras sequências se drogando) para uma experiência com uso de LSD e utilizando a imagem de Zé do Caixão, já personagem popularesco na época, como catalisador de suas alucinações.Aí não dá outra. O filme simplesmente vira do avesso, e somos testemunhas oculares da viagem lisérgica dos quatro indivíduos, em cores (toda a fotografia até agora era em preto e branco) do pesadelo que a imagem sepulcral de Zé do Caixão invoca em cada um deles. Mais ou menos parecido com o que Mojica fez em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, quando explora sua visão particular do inferno (também em cores, em detrimento do resto do filme P&B). Então Mojica em cada frame transborda várias imagens desconexas retratando cemitérios, mulheres seminuas, violência física e psicológica, tortura, submissão, misoginia e rostos humanos desenhado em bundas (???!!!) com matizes de cores ora quentes, ora frias, completamente estouradas e trilha sonora contundente. Um elemento bastante interessante de O Despertar da Besta é como Mojica trabalha a metalinguagem de seu personagem Zé do Caixão no universo pop, no cinema, quadrinhos e televisão, e sua apresentação como cineasta em programas de auditório, separando o joio do trigo do criador e da criatura, e também mostrando cenas de seus próprios filmes (quando os participantes da experiência vão assistir Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver) e pôsteres (de O Estanho Mundo do Zé do Caixão, objeto que irá inspirar os devaneios das cobaias do experimento) dentro de outro universo real cinematográfico que ele retrata por aqui. Ou seja, o mundo fictício do filme, mistura-se com o mundo real do diretor e de seu personagem. Mojica mais uma vez aposta no anti-convencional, marca registrada de seu cinema contestador. Cineasta de gênero, apesar de ser vítima de escárnio em sua pátria, ganhou imensa popularidade e fama fora do país, até por investir no cinema de terror e de certa forma, antevê-lo. Pois em pleno final dos anos 60 e começo dos anos 70, Mojica, autodidata que era, apostou em novas tendências narrativas, se inspirando no cinema inglês da Hammer e nos quadrinhos de terror e foi percursor de um tipo de cinema transgressor que ficaria famoso, por exemplo, na Itália, país absoluto no gênero durante as duas próximas décadas. Ou seja, se imagens desconexas e sem sentido em preto e branco são feitas por Jean Rollin, é genial. Se explorações visuais com uso de cores berrantes, sons estridentes e imagens de forte impacto visual são feitos por Dario Argento, é obra prima. Mojica utilizando desses artifícios no cinema nacional é depravado e objeto de chacota. Vai entender… O Despertar da Besta impressiona, pois sendo uma produção tupiniquim, explora habilmente o zeitgeiste torna-se escancaradamente um filme maldito e marginal, um grito de desabafo e desespero de uma sociedade, em forma de cinema. Mojica não tem rabo preso e não se incomoda nem um pouco de ser chocante e extremista. Nós, brasileiros fãs do horror, agradecemos imensamente.
FONTE: http://101horrormovies.com/2013/07/31/228-o-despertar-da-besta-ritual-de-sadicos-1970/

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