segunda-feira, 10 de agosto de 2015

#852 2008 MARTYRS (Martyrs, França, Canadá)


Direção: Pascal Laugier
Roteiro: Pascal Laugier
Produção: Richard Grandpierre, Simon Trottier (Co-produtor), Frédéric Doniguian e Marcel Giroux (Produtores Executivos)
Elenco: Morjana Alaoui, Mylène Jampanoï, Catherine Bégin, Juliette Gosselin

Eu não quero parecer redundante, mas eu sempre venho dizendo aqui que o ciclo conhecido como new french extremity, nos trouxe os melhores exemplares do gênero de meados até final da década passada. E Martyrs é o seu auge! Um filme extremo, completamente pirado, daquele tipo que faz você se sentir mal quando termina de assistir e ficar horas e horas com ele na sua cabeça tentando assimilar tudo aquilo que acabou de ver. O longa franco-canadense impressionante de Pascal Laugier requer uma ampla reflexão, e é quase impossível de fazê-la sem entregar vários spoliers. Por isso tentarei fazê-lo na medida do possível. Primeiro é bom falar que é um autêntico gore francês, ao melhor estilo Alta Tensão e A Invasora, que flerta muito bem com o exploitaition e o torture porn. É impossível passar indiferente. Vai provocar uma reação em você. Pode ser de repulsa, de nojo, de revolta, de indignação, de horror, de estupefação. Sei lá. Mas incólume ele não deixa seus espectadores e ele se mostra bem claro, desde sua sequência de abertura, que foi todo trabalhando na intenção de chocar. O filme pode ser dividido em duas partes completamente diferentes. No começo, somos apresentados a uma jovem Lucie, garota que escapou de um terrível cárcere onde era torturada física e psicologicamente. Ela vai parar em uma instituição onde conhece Anna, de quem fica amiga e confidente. Passam-se 15 anos e Lucie (agora interpretada por Mylène Jampanoï) cresceu mentalmente instável, deprimida, com pesadas alucinações e tendências suicidas. Ela viveu todo esse tempo em busca de vingança de quem fez aquilo com ela e encontra seus torturadores por meio de um recorte de jornal. A vingança começa um ritmo frenético e com litros de sangue derramado, como todo bomnew french extremity, quando Lucie invade a casa da família de seus ricos algozes, enquanto tomam um belo café da manhã em uma idílica manhã de domingo. Armada com uma calibre 12., ela extermina todos os moradores da casa, inclusive os filhos adolescentes que não têm nada a ver com o pato. Tudo isso para saciar uma espécie de demônio interno que persegue e mutila Lucie desde garota, personificada por uma deformada mulher magra, meio zumbi, meio menina Medeiros de REC e meio fantasma de filme japonês, que ela deixou presa e não prestou ajuda quando fugiu há 15 anos. Anna (a excelente Morjana Alaoui), que sempre esteve do lado da amiga nutrindo uma paixão lésbica não consumada, tenta ajudá-la a limpar a bagunça e dar um sumiço nos corpos, enquanto Lucie continua surtando tendo suas visões paranoicas da criatura a perseguindo, que logo vamos ver que na verdade só existe na sua cabeça, mas que desde o começo é bem óbvio, e isso faz com que ela acabe se suicidando (mas em sua cabeça doentia foi a outra). Daí o filme vai mudar completamente e vamos voltar ao começo da trama, onde descobrimos que o pai e a mãe daquela família continuam com sua atividade paralela e na verdade eles pertencem a uma organização de endinheirados que torturam as pessoas para descobrir mártires. E Anna, capturada nessa altura do campeonato, será a próxima. Daqui para frente vem os SPOILERS pesados, só para quem já viu o filme. Então pule para o último paragrafo e faça um favor a si mesmo: assista-o e depois volte para cá, ou leia por sua conta e risco. Aquele ritmo tenso e alucinado do início agora muda completamente e o filme começa a se arrastar para mostrar Anna comendo o pão que o diabo amassou, levando porrada e sendo alimentada com uma gororoba todo santo dia, até ela deixar se levar e estar pronta para ser transformada em mártir. Mas o que raios é isso? Segundo a Senhora, cabeça da organização que é um cópia da Fernanda Montenegro, o mártir não é simplesmente uma vítima. É uma testemunha, que irá passar por uma momentos extremamente traumáticos de dor e sofrimento prolongado, para que viva uma experiência transcendental de quase morte e que possa voltar e contar de forma vívida e lúcida sua epifania. Ou seja, um bando de velhos podres de ricos querem saber o que existe depois da morte, para entender qual o sentido da vida. Então financiam um grupo que tortura pessoas, de preferência jovens mulheres que são mais aptas a serem martirizadas, para que elas contem a eles sua revelação e eles possam ter uma maior conhecimento metafísico do que os espera. E daí o diretor joga uma luz sobre um desejo religioso claramente cristão, que na teoria deveria ser avesso a tudo que Anna e todas as outras garotas passaram. Isso é ou não é uma coisa maluca? Será que existe gente capaz de fazer isso de verdade? Esse é o tal embrulho no estômago que você sente ao terminar de ver o filme. E a questão aqui não é a violência gráfica em si. Afinal se você é fã de terror, ver cenas de tortura, sangue, espancamento e até escalpelamento, já virou rotina. O problema é tudo isso ser feito para, de alguma forma, tentar mostrar que para aquelas pessoas os fins justificam os meios. Daí é muito para minha cabeça! E no final é como se o diretor nos sacaneasse, assim como sacaneou todos aqueles que se reuniram para ouvir o que a Senhora tem a dizer sobre o testemunho de Anna enquanto teve sua revelação, seja ela qual for. Afinal, ela mete uma bala na cabeça antes de contar para todo mundo, levando o segredo para o túmulo. Pascal Laugier trollou geral. Mas isso que é instigante, que foge da regra do cinema convencional, principalmente o americano (nem vou citar aquele sofrível remake, porque vai que é doença…). O filme continua depois dos créditos, nas discussões, nas conclusões variadas que podem ser apresentadas. O que será que ela viu? Por que a Senhora se matou? Ela viu algo muito sublime? Viu algum lugar que tem certeza que não irá depois de bater as botas? Ou não viu absolutamente nada e toda essa busca não teve o menor sentido? Vai saber. Enfim, com atuações impressionantes das duas atrizes principais, e também da monstrenga fruto da alucinação de Lucie, ou mesmo da outra prisioneira que Anna encontra no calabouço subterrâneo da casa dos torturadores, Martyrs é um filme que impressiona. E mesmo se você for velho de guerra e escolado no cinema de terror, vai concordar comigo que é uma obra original, surpreendente, gráfica e transgressora. Porque no fundo ela trata o ser humano como descartável, e tende a extrapolar o limite para questionar qual o diabo que temos que passar para perder nossa humanidade, o quanto devemos sofrer para nos tornarmos santos aos olhos dos outros e por que não, de uma força superior e o quanto a religião, mesmo que travestida, pode gerar absurdos de comportamento. Nada em Martyrs é gratuito. Nem sua dose alta de crueldade e violência, nem seus pontos de reflexão.
FONTE: https://101horrormovies.com/2016/06/09/852-martyrs-2008/


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