Direção: Pascal Laugier
Roteiro: Pascal Laugier
Produção: Richard Grandpierre, Simon Trottier (Co-produtor), Frédéric
Doniguian e Marcel Giroux (Produtores Executivos)
Elenco: Morjana Alaoui, Mylène Jampanoï,
Catherine Bégin, Juliette Gosselin
Eu não quero parecer redundante, mas eu sempre venho dizendo aqui que
o ciclo conhecido como new french extremity, nos trouxe os
melhores exemplares do gênero de meados até final da década passada. E Martyrs é o seu auge! Um filme extremo, completamente pirado, daquele tipo
que faz você se sentir mal quando termina de assistir e ficar horas e horas com
ele na sua cabeça tentando assimilar tudo aquilo que acabou de ver. O longa
franco-canadense impressionante de Pascal Laugier requer uma ampla
reflexão, e é quase impossível de fazê-la sem entregar vários spoliers. Por
isso tentarei fazê-lo na medida do possível. Primeiro é bom falar que é um
autêntico gore francês, ao melhor estilo Alta Tensão e A Invasora, que flerta muito bem com o exploitaition e
o torture porn. É impossível passar indiferente. Vai provocar uma
reação em você. Pode ser de repulsa, de nojo, de revolta, de indignação, de
horror, de estupefação. Sei lá. Mas incólume ele não deixa seus espectadores e
ele se mostra bem claro, desde sua sequência de abertura, que foi todo
trabalhando na intenção de chocar. O filme pode ser dividido em duas partes
completamente diferentes. No começo, somos apresentados a uma jovem Lucie,
garota que escapou de um terrível cárcere onde era torturada física e
psicologicamente. Ela vai parar em uma instituição onde conhece Anna, de quem
fica amiga e confidente. Passam-se 15 anos e Lucie (agora interpretada por
Mylène Jampanoï) cresceu mentalmente instável, deprimida, com pesadas
alucinações e tendências suicidas. Ela viveu todo esse tempo em busca de
vingança de quem fez aquilo com ela e encontra seus torturadores por meio de
um recorte de jornal. A vingança começa um ritmo frenético e com
litros de sangue derramado, como todo bomnew french extremity, quando Lucie
invade a casa da família de seus ricos algozes, enquanto tomam um belo café da
manhã em uma idílica manhã de domingo. Armada com uma calibre 12., ela
extermina todos os moradores da casa, inclusive os filhos adolescentes que não
têm nada a ver com o pato. Tudo isso para saciar uma espécie de demônio interno
que persegue e mutila Lucie desde garota, personificada por uma deformada
mulher magra, meio zumbi, meio menina Medeiros de REC e meio fantasma de filme japonês, que
ela deixou presa e não prestou ajuda quando fugiu há 15 anos. Anna (a excelente
Morjana Alaoui), que sempre esteve do lado da amiga nutrindo uma paixão lésbica
não consumada, tenta ajudá-la a limpar a bagunça e dar um sumiço nos corpos,
enquanto Lucie continua surtando tendo suas visões paranoicas da criatura a
perseguindo, que logo vamos ver que na verdade só existe na sua cabeça, mas que
desde o começo é bem óbvio, e isso faz com que ela acabe se suicidando (mas em
sua cabeça doentia foi a outra). Daí o filme vai mudar completamente e vamos
voltar ao começo da trama, onde descobrimos que o pai e a mãe daquela família
continuam com sua atividade paralela e na verdade eles pertencem a uma
organização de endinheirados que torturam as pessoas para descobrir mártires. E
Anna, capturada nessa altura do campeonato, será a próxima. Daqui para frente
vem os SPOILERS pesados,
só para quem já viu o filme. Então pule para o último paragrafo e faça um favor
a si mesmo: assista-o e depois volte para cá, ou leia por sua conta e risco.
Aquele ritmo tenso e alucinado do início agora muda completamente e o filme
começa a se arrastar para mostrar Anna comendo o pão que o diabo amassou,
levando porrada e sendo alimentada com uma gororoba todo santo dia, até ela
deixar se levar e estar pronta para ser transformada em mártir. Mas o que raios
é isso? Segundo a Senhora, cabeça da organização que é um cópia da Fernanda
Montenegro, o mártir não é simplesmente uma vítima. É uma testemunha, que irá
passar por uma momentos extremamente traumáticos de dor e sofrimento
prolongado, para que viva uma experiência transcendental de quase morte e que possa
voltar e contar de forma vívida e lúcida sua epifania. Ou seja, um bando de
velhos podres de ricos querem saber o que existe depois da morte, para entender
qual o sentido da vida. Então financiam um grupo que tortura pessoas, de
preferência jovens mulheres que são mais aptas a serem martirizadas, para que
elas contem a eles sua revelação e eles possam ter uma maior conhecimento
metafísico do que os espera. E daí o diretor joga uma luz sobre um desejo
religioso claramente cristão, que na teoria deveria ser avesso a tudo que Anna
e todas as outras garotas passaram. Isso é ou não é uma coisa maluca? Será que
existe gente capaz de fazer isso de verdade? Esse é o tal embrulho no estômago
que você sente ao terminar de ver o filme. E a questão aqui não é a violência
gráfica em si. Afinal se você é fã de terror, ver cenas de tortura, sangue,
espancamento e até escalpelamento, já virou rotina. O problema é tudo isso ser
feito para, de alguma forma, tentar mostrar que para aquelas pessoas os fins
justificam os meios. Daí é muito para minha cabeça! E no final é como se o
diretor nos sacaneasse, assim como sacaneou todos aqueles que se reuniram para
ouvir o que a Senhora tem a dizer sobre o testemunho de Anna enquanto teve sua
revelação, seja ela qual for. Afinal, ela mete uma bala na cabeça antes de
contar para todo mundo, levando o segredo para o túmulo. Pascal Laugier trollou geral.
Mas isso que é instigante, que foge da regra do cinema convencional,
principalmente o americano (nem vou citar aquele sofrível remake,
porque vai que é doença…). O filme continua depois dos créditos, nas
discussões, nas conclusões variadas que podem ser apresentadas. O que será que
ela viu? Por que a Senhora se matou? Ela viu algo muito sublime? Viu algum
lugar que tem certeza que não irá depois de bater as botas? Ou não viu
absolutamente nada e toda essa busca não teve o menor sentido? Vai saber. Enfim,
com atuações impressionantes das duas atrizes principais, e também da
monstrenga fruto da alucinação de Lucie, ou mesmo da outra prisioneira que Anna
encontra no calabouço subterrâneo da casa dos torturadores, Martyrs é um filme que impressiona. E mesmo se você for velho de guerra e
escolado no cinema de terror, vai concordar comigo que é uma obra original,
surpreendente, gráfica e transgressora. Porque no fundo ela trata o ser humano
como descartável, e tende a extrapolar o limite para questionar qual o diabo
que temos que passar para perder nossa humanidade, o quanto devemos sofrer para
nos tornarmos santos aos olhos dos outros e por que não, de uma força superior
e o quanto a religião, mesmo que travestida, pode gerar absurdos de
comportamento. Nada em Martyrs é gratuito. Nem sua dose alta de crueldade e violência, nem seus
pontos de reflexão.
FONTE: https://101horrormovies.com/2016/06/09/852-martyrs-2008/
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