terça-feira, 31 de maio de 2016

#607 1990 A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (Night of the Living Dead, EUA)


Direção: Tom Savini
Roteiro: George A. Romero
Produção: John A. Russo, Russell Streiner; Christine Forrest (Produtora Associada); Menahem Golan, George A. Romero (Produtores Executivos)
Elenco: Tony Todd, Patricia Tallman, Tom Towles, McKee Anderson, William Butler, Katie Finneran

A palavra REFILMAGEM é suficiente para causar certa ojeriza nas pessoas. Quando se usa o termo REFILMAGEM para talvez o mais importante filme de horror de todos os tempos, o responsável pelo surgimento do cinema de terror americano moderno, uma obra seminal dirigida por um jovem cineasta brilhante em inspirador início de carreira, a reação pode beirar o pânico. É isso que talvez possa acontecer no caso de A Noite dos Mortos-Vivos, a atualização colorida do clássico de George A. Romero, dirigida por Tom Savini, lançada 22 anos depois do original. Mas, felizmente, podemos respirar aliviados, pois o trabalho não ficou aquém ao original, muito pelo contrário, consegue até superá-lo em determinados aspectos, por conta do avanço tecnológico, das possibilidades estéticas e do orçamento maior. O que poderia ser mais um problema, afinal você pegar um clássico do “underground”, do cinema de terror independente, de autor, e colocar na mão de uma Columbia Pictures da vida, feito sob encomenda para uma restrição R, em tempos que os italianos redefiniram os rumos do gore na década passada, é um tanto quanto preocupante. Mas tranquiliza o fato de saber que Savini e Romero estão envolvidos, esse último, o pai do zumbi como conhecemos hoje, como produtor executivo e roteirista, baseado no seu próprio texto escrito com John Russo. Outro fator é que Romero envolvido no projeto e dando o sinal verde sinaliza que de certa forma toda a preocupação artística e de conteúdo ficou para trás, lá em 1968, e a sua necessidade neste momento, e tanto quanto legítima, era ganhar dinheiro em cima de uma obra que ele recebeu praticamente nenhum tostão. Para quem não sabe, A Noite dos Mortos-Vivos original é de domínio público por conta de uma trapalhada dos produtores que deixaram de forma vexatória e amadora o aviso de direitos autorais de fora da cópia original. Então o remake foi feito sob medida para maximizar a rentabilidade e uma compensação financeira depois de tudo. Fora isso, lá em 1990 vivíamos uma desconfiança sobre o zumbi, muito por conta da sua desconstrução e os caminhos cinematográficos que o morto-vivo percorreu durante os anos 80 (assim como o próprio cinema de terror em si). “Thriller” sepultou a reputação assustadora e pessimista dos cadáveres ambulantes e A Volta dos Mortos-Vivos serviu como o último prego do caixão, transformando-os em objetos da cultura pop, motivo de troça, que não metiam mais medo em ninguém. Então a missão de Savini, ainda mais com o título consolidado de mestre dos efeitos de maquiagem, era reinventar o zumbi mais uma vez, apelando para o acompanhamento de autópsias e estudos de corpos em campos de concentração para obter um alto grau de realismo e nos relembrar que aquilo são cadáveres dos nossos que voltaram à vida, e aquilo é sim digno de medo e asco. E logo no primeiro momento em que os zumbis aparecem em cena, temos esse choque de realidade. Inicialmente por quebrar a expectativa, que em nossa cabeça, aquele momento em que Barbara (Patricia Tallman) e Johnnie (Bill Moseley) estão no cemitério (“The’re coming to get you, Barbra”) seria recriado em cópia carbono, mas não. Vemos inicialmente o morto-vivo passando direto com suas roupas rasgadas nas costas (tal qual os verdadeiros cadáveres são enterrados) e Johnnie sendo abruptamente atacado por outro zumbi, que lhe quebra o pescoço e dá início a escapada de Barbara em busca de proteção em uma casa de campo, onde irá encontrar Ben (Tony Todd) e seus demais ocupantes, o infame Harry Cooper (Tom Towles), sua esposa Helen (McKee Anderson) e sua filha infectada, Sarah (Heather Mazur), além do casal Tom (William Butler) e Judy Rose (Katie Finnerman). A velha batalha por sobrevivência enquanto os zumbis tentam invadir o local pelas portas e janelas está ali, assim como a já famosa crítica social tão incisiva de Romero, amplificando tudo que há de pior na natureza humana em uma situação como essa, colocando desejos mesquinhos de liderança, controle e subserviência em primeiro plano, como uma ameaça muito maior do que os devoradores de cérebro e entranhas que se aglutinam à espreita. Mas há um detalhe interessantíssimo nessa releitura de personagens que recai sobre os ombros de Barbara. A questão racial tão explícita no original aqui é deixada de lado para dar lugar a questão de gênero. O feminismo toma conta como contexto principal da película, aumentando a importância do papel de Barbara e diminuindo de Ben. Afinal estamos na década de 90, início da década do “Girl Power”, e um momento do próprio cinema em que a heroína forte e determinada estava em relevância, todas filhas de Ellen Ripley em Alien, O Oitavo Passageiro. A Barbara original era apenas uma garota histérica, indefesa, que passa grande parte do filme em estado de choque, chegando até a levar um tapa de Ben para que retorne à terrível realidade, enquanto a personagem de Patricia Tallman está bem no meio do fogo cruzado de uma crise de machismo e discussão ignorante entre Ben e Cooper, para metaforicamente ver quem tem o pau maior, ela toma as rédeas da situação de forma prática e racional (obviamente depois do choque, depois de desabar e tomar fôlego, juntar forças, tirar a saia e vestir algo mais propenso para a situação, pegar uma arma e tomar a iniciativa). Na refilmagem de A Noite dos Mortos-Vivos, ela é a heroína, a protagonista, que entende a gravidade da situação de uma forma mais ampla, enquanto Ben é tão irresponsável e explosivo quanto Cooper, e ao mesmo tempo, ela percebe todo o problema social de uma volta à vida dos cadáveres (“Eles são nós e nós somos eles” é sua emblemática frase ao final). Enquanto a sociedade patriarcal da autoridade e abuso do poder vai ruindo a sua volta, tanto nas discussões intermináveis de onde é o local mais seguro da casa quanto no descontrole dos homens e suas armas de fogo com suas atitudes covardes, arrogantes e egocêntricas, ao final Barbara apenas racionaliza a situação e se lança a sobrevivência com eficiência, como uma mulher forte, independente, ativa e ciente de suas decisões. O grande choque talvez seja a mudança do final, que obviamente não caberia nessa refilmagem, uma vez que as tensões raciais não estavam em grau de ebulição como no final dos anos 60, e não faria sentido o herói negro sobreviver, mas acabar sendo morto, mesmo que de forma acidental, por caipiras rednecks. Ben acaba se transformando em um zumbi, mas quando Barbara volta à casa, Cooper está vivo, mesmo depois dele e Ben terem trocado tiros em uma espécie de bangue-bangue sem sentido, e cabe a Barbara meter uma bala em sua cabeça, eliminando o verdadeiro vilão do longa e colocando abaixo aquela mentalidade misógina, aquela ordem patriarcal dominante que ele tanto defendia. Sem peso na consciência, afinal ali surgia um admirável mundo novo, ela apenas diz que ele havia sido transformado em zumbi. A Noite dos Mortos-Vivos faturou mais de cinco milhões de dólares nas bilheterias americanas e acabou por agradar aos fãs. O trabalho seguro de Savini por trás das câmeras em seu debute, mesmo no meio de brigas com equipe, ressentimentos e o fato de Romero, pai da criança, não estar por perto (até por conta disso muito se percebe ser homenagem do diretor ao mestre), foi eficiente e mesmo com o banho de gore ficando de fora por tratar-se de um filme de estúdio e dos famigerados cortes do MPAA (que inicialmente deu uma classificação X) a fita e serve muito bem ao propósito de atualizar o grande clássico do horror para uma nova geração e resgatar a combalida reputação do zumbi.
FONTE: https://101horrormovies.com/2015/02/05/607-a-noite-dos-mortos-vivos-1990/

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